terça-feira, 23 de junho de 2009

Roger

1º Capítulo



Rogério Afonso, cinquenta e cinco anos feitos há pouco, saiu de Baião aos onze para trabalhar numa Adega e mercearia de um conhecido do pai.

Naquele dia enevoado de um Fevereiro bastante rigoroso, o frio entranhava-se nos ossos e os dentes mais pareciam castanholas. Na paragem da camioneta, que como sempre nunca cumpria o horário dava uma última olhadela para a aldeia que o viu crescer, que ficava um bom bocado abaixo do nível da estrada e ia ouvindo os concelhos da mãe que foi a única a vir despedir-se dele, ela e o Fredy, cão arraçado de pastor que nunca o largava.

- Tem cuidado a atravessar as ruas, olha bem para os dois lados antes de o fazeres e vê lá as amizades que arranjas, olha que eles lá na cidade são todos uns sabichões, recomendava a mãe.

Praticamente não tinha dito nada aos amigos, não havia nada a comemorar, na verdade a sensação estranha que sentia era um vazio enorme e a resignação pelo castigo que lhe estavam a infligir.

Adorava o cheiro do campo, jogar à bola com os colegas de escola na leira do Sr. Agostinho, há muito abandonada e onde devido aos constantes jogos de futebol a erva não tinha direito a crescer. As ovelhas que por lá pastavam já o conheciam, havia até uma que quando o via a descansar à sombra do velho castanheiro se abeirava e lhe dava turras nas pernas como que a pedir uma festinha.

O burro que puxava a carroça da distribuição de azeite que o Sr. Almiro fazia às terças-feiras de manhã é que parecia que não encarava lá muito bem com o rapaz, sempre que passava por ele zurrava imenso.

Era chegada a hora da partida, já se avistava a carreira lá ao fundo nas curvas e contra curvas.

Deu um beijo e abraçou com força à mãe que estava com a lágrima no olho, fez uma festinha ao cão que parecia entender que tão cedo não voltava a pôr-lhe a vista em cima.

Entrou na camioneta, tirou um bilhete para o Porto e pediu ao revisor que o avisasse quando estivesse perto da Praça dos Poveiros, era a primeira vez que saía da aldeia e não conhecia nada na grande cidade.

Acomodou na bagageira por cima do banco a malita com a roupa, sentou-se e murmurou baixinho com os dentes cerrados: até breve terra linda!

A mãe tinha ficado a dizer-lhe adeus da paragem e o Fredy correu atrás da camioneta até onde pode, mas acabou por desistir.

Pelo caminho ia sentindo cada vez mais forte um misto de tristeza e alegria, deixava a sua aldeia mas ia com certeza ver muitas coisas novas, era uma aventura, a descoberta de um mundo novo, ao mesmo tempo que se punha a imaginar como seria o seu patrão, seria boa pessoa? Iria aceitá-lo bem? Teria um quartinho só para ele? Afinal, sempre dividiu o quarto com dois dos sete irmãos.

De vez em quando respirava fundo e pensava: Vai tudo correr bem, se Deus quiser vou ver como é o mar.

A aldeia em que vivia – Loivos da Ribeira, era a mais pequena das freguesias de Baião e os sítios mais longínquos que conhecia eram exactamente Vila Real e Cinfães. A Vila Real tinha ido uma vez de excursão à romaria da Senhora da Pena, ficou deslumbrado com todo aquele movimento, e completamente estupefacto com a altura do andor que várias dezenas de homens carregavam a muito custo.

A Cinfães foi uma vez com o pai comprar umas alfaias usadas por indicação do Tio Alfredo que lá vive há muitos anos.

Depois de passar a Venda Nova começou a notar a diferença: muitas casas, prédios altos, as filas de trânsito, e à medida que avançava cada vez mais reboliço, tudo em grande ebulição, o cheiro era diferente, uma mistura de aromas que não dava para definir correctamente.

- Ena, Ena, quando os meus amigos souberem vão roer-se de inveja da minha aventura, mal possa escrevo-lhes um postal, dizia ele para os seus botões, a animar-se a si próprio para ajudar a ultrapassar os receios que ia sentindo.

Mergulhado em pensamentos deveras confusos lá fez a viagem sem sequer dar por ela que tinha chegado ao destino. Olhou para o lado para a frente e para trás e já todos tinham saído, foi nessa altura que o revisor se aproximou e disse: - Ó rapaz, desculpa lá o mau jeito mas esqueci-me de te avisar que devias ter saído três paragens antes, mas não te preocupes que é aqui próximo, eu ensino-te o caminho. Deu-lhe as indicações necessárias e o Rogério lá se fez ao caminho. Muito admirado com tantas montras, tanto rebuliço, completamente o oposto ao sossego da sua aldeia. Chegado à Praça dos Poveiros sacou do papel que trazia no bolso das calças e viu o número, e lá estava a Adega do Buraquinho.

Do outro lado da rua dava para ver o ambiente da casa, tinha bastantes pessoas a comer sandes e beber vinho e cerveja, e as duas pequenas mesas ao fundo também estavam ocupadas. Seriam umas onze horas da manhã. Parou à porta com a malita da roupa na mão e viu um senhor gordo, baixote, com um grande bigode retorcido e óculos bastante graduados que se encontrava a servir os clientes, devia ser aquele o seu patrão, o tal conhecido do pai.

Respirou fundo e avançou, dirigindo-se ao senhor, um pouco tímido e envergonhado e disse: - Bom dia senhor, sou filho do Sr. Artur de Baião, ele mandou-me vir ter consigo.

O homem olhou-o de alto a baixo e disse: Olá rapaz, então és tu que vens para aqui trabalhar? Muito bem. Desce essas escadinhas e diz à Dona Noémia que te indique o teu quarto, pousa lá as tuas coisas e vem para cima, ah, e que ponha mais um prato na mesa.

Lá desceu as escaditas estreitas que davam acesso a uma cave pouco iluminada e viu uma senhora também gorducha e baixinha sentada a uma mesa a cortar pedaços de carne que ia deitando para uma panela ao lume num fogão grande. Ao seu lado esquerdo e atrás de si, havia imensos garrafões amontoados, alguns sacos de batatas, e vários presuntos pendurados em ganchos que um barão de ferro suportava. Era uma mistura de cheiros a que não estava habituado.

Sorriu para a senhora e disse: Bom dia minha senhora, sou o novo empregado! O senhor lá em cima disse para a senhora me indicar o quarto e que pusesse mais um prato à mesa.

A senhora com sorriso simpático respondeu-lhe: Sim, sim, temos estado à tua espera, és o filho do Sr. Artur, anda comigo rapazinho e foi-me encaminhando para uma porta junto dos garrafões que dava acesso a um anexo de madeira num quintal. Abriu-me a porta, ligou-me a luz e deu-me a chave do quarto. – Este é o teu quartinho, organiza lá as tuas coisinhas e sempre que tiveres roupa suja dá-ma para lavar, depois vai lá para cima para a beira do Sr. Victor para ires aprendendo a trabalhar. Saiu, fechou a porta e o rapaz ficou imóvel por instantes a olhar a sua nova casa. Tinha uma cama pequena com uma colcha vermelha às pintinhas, um travesseiro a toda a largura, uma mesinha de cabeceira com um relógio despertador em cima, um armário da roupa, um banco tosco de madeira e um pequeno espelho pendurado atrás da porta. As próprias telhas serviam de tecto e não tinha janela mas mesmo assim estava feliz com o seu cantinho, pela primeira vez tinha um quarto só para si. Tirou a roupa da mala e pendurou-a nos cabides do armário e para não evidenciar qualquer tipo de desarrumação pegou na mala e colocou-a debaixo da cama. Em seguida saiu, fechou a porta à chave e dirigiu-se ao andar de cima conforme o senhor Victor havia dito.

Aí chegado, o homem de farta bigodaça sorriu para ele e disse:

- Muito bem rapaz, pareces desenrascado, demoraste menos tempo do que eu pensei. Como te chamas?

– Rogério Sr. Victor.

- Ah! já sabes o meu nome.

- Foi a Dona Noémia que mo disse.

- Muito bem! Então a partir de agora passas a ser o Roger, é mais fácil para mim, não te importas?

- Claro que não Sr. Victor.

- Muito bem. Deixa-te estar aí e vai vendo como atendo os clientes para aprenderes.

E o rapaz lá ficou a ver o patrão servir copos de vinho, que tirava directamente de dois barris, um de branco e outro de tinto, assim como cerveja, sandes de presunto e bifanas pelo meio.

Enquanto isso, ia observando tudo à volta, sem deixar de estar atento às conversas dos clientes.

A maior parte delas tinha a ver com o futebol, principalmente acerca do Porto e do Benfica, do Sporting pouco falavam, então do seu Baião é que ninguém comentava nada.

A D. Noémia aparece ao cimo das escadas e diz:

- Vá lá, vão os dois almoçar que a comida está no prato, mas despachem-se senão comem tudo frio.

A senhora passa para dentro do balcão e o Sr. Victor exclama:

- Está na hora de meter pó bandulho, anda daí Roger.

Descemos as escadas e lá estava a mesa posta com três pratos, dois com feijoada e arroz e o outro vazio – era o da D. Noémia que almoçava a seguir a nós.

- Lava as mãos Roger, e quero que comas tudo, quem não é para comer não é para trabalhar e tu precisas de te alimentar bem que estás a crescer.

Entre as garfadas e uns goles de vinho tinto, foi explicando o que o rapaz tinha que fazer.

- Aquela porta junto ao balcão dá para a mercearia, onde está a Fatinha.

- Ah! Sabes andar de bicicleta?

- Sei sim, senhor, respondeu o Roger com um brilho enorme nos olhos, afinal na aldeia só andava de bicicleta quando o filho do Sr Moreira da drogaria já estava cansado e o deixava dar umas voltas lá no largo da igreja. Foi aliás assim e à custa de muitas quedas que aprendeu a andar em cima das duas rodas.

- Muito bem! Ao fundo no armazém tens uma bicicleta com um caixote para as entregas. O teu trabalho aqui consiste em estares à minha beira na adega, vais lavando os copos e quando a Fatinha te chamar pões a encomenda que ela te der na bicicleta e vais entregar à morada que ela te indicar.

Vê se és sempre simpático e educado com os clientes e mostra-lhes sempre um sorriso. Isso é importante.

- Então, não bebes nada? Um copito deste tintol só te faz bem, este até faz acordar os mortos, é da tua terra.

Retira a garrafa de sumo da frente do rapaz e enche-lhe um copo de vinho.

Almoçaram e lá subiram para a D. Noémia poder fazer a sua refeição também.

A azáfama dos copos e das sandes continuou até que apareceu uma rapariga do lado da mercearia que devia ser a tal Fatinha e disse:

- Ó Sr. Victor tem ali duas encomendas para entregar.

- Vai lá Roger.

- Chamas-te Roger? Isso é nome estrangeiro, não é? diz a moça e antes que ele pudesse responder disse:

- Olha, vais levar esta encomenda à Rua Fernandes Tomás ao 3º andar do nº 725 e esta à Rua da Alegria, 420 – 1º. Já sei que não conheces isto aqui mas eu explico-te.

Depois da explicação acerca do percurso que devia tomar e dos cuidados a ter, acondicionou bem a encomenda no caixote para não se partir nada. A bicicleta era um bocado alta para ele e ainda por cima o caixote atrás complicava um bocado, tinha de levantar muito a perna para passar por cima, levou-a para a rua e com a ajuda do passeio lá se desenrascou e partiu.

Seguiu as instruções que a moça lhe havia dado e lá chegou à Rua Fernandes Tomás, bateu três pancadas com o batente de ferro que tinha a forma da cabeça de um leão e logo surgiu uma velhota à janela que ao aperceber-se tratar-se do marçano abriu a porta.

Subiu as escadas, saudou educadamente a senhora, entregou a encomenda, deu-lhe o comprovativo da entrega para assinar e despediu-se com um “muito obrigado”. Voltou a pedalar com toda a alegria no seu novo meio de transporte e lá seguiu para fazer a segunda entrega. Quando acabou apetecia-lhe andar mais um bocado de bicicleta mas resolveu seguir directo para a Adega não fosse o Sr. Victor chatear-se pela demora.

Quando chegou, entrou pela porta da mercearia e estacionou o veículo no local de onde o tinha levado. Entregou os papéis assinados pelos clientes à Fatinha, e dirigiu-se imediatamente à adega.

O Sr. Victor visivelmente satisfeito, pois achou que o rapaz tinha feito a volta com bastante rapidez, perguntou:

- Então Roger, deste conta do recado sem te atrapalhares?

- Fiz tudo direitinho como me disseram Sr. Victor.

- Muito bem rapaz, estou a gostar de ti, é assim mesmo. Lava-me essa louça para não se acumular e se tiveres alguma duvida pergunta.

E assim se foi passando a tarde até que por volta das 21 horas o Sr. Victor mesmo com alguns clientes no interior da adega foi encostando a porta, sinal evidente que estava a chegar a hora do fecho.

Mal os últimos clientes saíram, o Sr. Victor começou a fechar a caixa e a conferir o dinheiro e disse:

- Mal acabes de arrumar essa loiça, desce para jantar que eu vou a seguir e depois se te apetecer podes ir dar uma volta aí pelas imediações para começares a conhecer melhor a cidade. Pedes a chave das traseiras à D. Noémia e antes da meia-noite tens de estar aqui. Entrando pelas traseiras podes ir directamente para o teu quarto. Mas não te esqueças, quero-te aqui antes da meia-noite e amanhã às oito já tens de estar aqui em cima, lavado e aprumado.

O rapaz andou por ali a entreter para descer junto com o patrão. A D. Noémia já tinha o jantar pronto, era arroz de cabidela.

- Eh lá! Estás cheio de sorte. Isto é comida de rico, mas mereceste, hoje portaste-te muito bem, espero que continues assim para a gente se dar bem.

Já agora quando saíres, tem cuidado com as amizades que arranjas, anda por aí muito vagabundo que sabe mais que o Papa. Anda aí cada vigarista!

A Dona Noémia vai ao bolso da bata e tira uma chave e diz-lhe:

- Toma, é a chave da porta das traseiras, entrando por lá podes ir directamente para o teu quarto, mas não faças barulho que nós temos o sono muito leve.

Acabaram de jantar, o Sr Victor acende um cigarro e pega no jornal que tinha trazido lá de cima e começa a ler. A Dona Noémia agarra-se de imediato à loiça e começa a arrumar tudo.

Roger aproveita e pede autorização para sair. Dirige-se ao quarto, deita-se em cima da cama conforme estava e olhando para as telhas começa a rever mentalmente tudo quanto tinha acontecido desde que saiu de manhã bem cedo da sua linda terra. Estava cansado mas a curiosidade de saber como era o ambiente nas ruas ali próximas fê-lo levantar de seguida e ir dar uma volta pelas redondezas.

Começou por subir a Rua da Alegria, resolveu que subia pelo lado direito e descia pelo esquerdo e em cada transversal andava uns cinquenta metros e voltava à rua inicial para não se perder e na volta faria o mesmo para o outro lado.

Subiu a rua toda até chegar à Constituição e para que não chegasse mais tarde que a meia-noite regressou directo sem entrar nas transversais, pensou para com os seus botões:

- Tenho muitos dias para ver o resto.

De todas as montras que viu, no meio daquela imensa variedade de produtos, o que mais lhe chamou a atenção foi a loja de bicicletas, ficou admirado com as máquinas lá expostas.

- Um dia hei-de ter uma destas, parece um avião, murmurou baixinho.

Estava na hora e lá se dirigiu à sua nova casa. Entrou pela porta das traseiras conforme o combinado e pronto, estava no seu quartinho, ele e apenas ele. Despiu-se, vestiu o velho pijama já todo puído do uso e exclamou para os seus botões:

- Mal possa compro uns chinelos para não andar aqui pelo quarto descalço.

Deitou-se por cima da cama e ainda com a luz ligada começou a falar para com os seus botões:

- Que dia! Os meus amigos nem sequer pensam nas coisas que estou a descobrir. Estou cansado mas contente, muito contente. Fartei-me de andar de bicicleta e o melhor de tudo é que agora, vou poder dar o gostinho ao pé todos os dias.

- Como estarão os meus pais e os meus irmãos? Para a semana escrevo-lhes uma carta a contar as novidades.

Se for sempre assim não é nada mau. Não sei quanto vou ganhar, mas pelo menos, comida, cama e roupa lavada estão garantidos.

Não há dúvida que isto aqui é outro mundo, as coisas funcionam a outra velocidade. Gosto muito da minha aldeia, não há nada que se lhe compare mas a cidade também tem muitos encantos. Vou tentar conhecer ruas novas todos os dias e com jeitinho o Sr. Victor deixa-me sair à noite de bicicleta, para já não lhe peço que ele pode pensar que estou a abusar, mas depois digo-lhe que ficava a conhecer melhor a cidade se fosse na máquina.

Bom! Deixa lá acertar o despertador, meter-me debaixo dos lençóis, apagar a luz e virar-me para o outro lado. Já estou com sono e ás oito é preciso estar prontinho.

Foi dito e feito, passados dois minutos estava a dormir o sono dos justos.

Tinha posto o relógio a despertar para as sete e meia mas acordou antes, eram umas sete e quinze mais coisa menos coisa. Sentou-se na cama, esfregou os olhos e ficou por instantes parado a observar o seu novo quarto, ainda não se tinha habituado ao novo ambiente. Depois levantou-se, calçou os sapatos e de pijama ainda atravessou o quintal para ir lavar-se na casa de banho de serviço que ficava no lado oposto ao do seu quarto. Em seguida entrou de novo no quarto tirou o pijama e vestiu-se.

Ainda faltava um quarto de hora para as oito, coçou a cabeça e pensou:

- É melhor ir que o patrão de certeza que já lá está.

Abriu a porta que dava acesso à parte debaixo da casa, onde tinham os presuntos, os garrafões e onde tinha tomado as refeições e a D. Noémia já lá estava agarrada aos tachos, sorriu para a senhora e disse:

- Bom dia Dona Noémia, cá estou eu, pronto para o trabalho.

- Bom dia rapazinho, é assim mesmo, nada como a pontualidade, só assim serás um homem, o Sr. Victor já está lá em cima, não deve tardar a abrir a porta, respondeu a senhora.

Subiu as escadas e lá estava o patrão com o cigarro ao canto da boca a tirar os ferros de segurança da parte de dentro da porta principal.

- Bom dia Sr. Victor

- Bom dia Roger. Então? dormiste bem, não estranhaste a cama?

- Não senhor, dormi até muito bem e ontem à noite já fui conhecer algumas ruas.

- Sim senhor, e pelos vistos deste com o caminho de volta, estás a ficar um artista.

O rapaz sorriu, contente, entretanto mal o patrão abriu a porta entrou a Fatinha, cumprimentou os dois e foi abrir a mercearia.

Passados uns minutos lá chegaram os primeiros clientes para tomar o cafézito e o bagaço da ordem, diziam eles que era para matar o bicho e o Roger lá ia lavando as chávenas e os copos e observando tudo à volta enquanto pensava:

- Deus queira que haja encomendas para entregar para ir dar umas voltas de bicicleta.

Por volta das nove horas a Dona Noémia apareceu ao cimo das escadas e disse:

- Vá lá, desçam para tomar o pequeno-almoço que eu fico aqui um bocado.

Desceram os dois e lá estava a mesa com duas canecas de café e dois pães com manteiga. O rapaz não se fez rogado, devia estar com fome e comeu o lanche num abrir e fechar de olhos, chamou-lhe um figo.

Voltaram passados poucos minutos, a senhora lá foi à vida dela e continuaram os dois com os cafés, bagaços e sandes, e o rapaz ansioso por umas entregas que só iam acontecer da parte da tarde. A Fatinha veio à porta e chamou-o para ir fazer uma entrega, ele ficou na maior das alegrias.

- Leva esta encomenda ao campo Vinte e quatro de Agosto ao nº 17 no r/chão e diz à Dona Jacinta que alface boa, só amanhã. Explicou-lhe o caminho e o rapaz lá foi todo feliz da vida na sua máquina. Quando chegou ao destino reparou que duas portas à frente, se encontrava uma bicicleta como a sua, com um caixote e disse para com os seus botões:

- Deve ser algum colega de ofício.

Bateu à porta da cliente, entregou a encomenda e deu o recado da Fatinha, quando se despediu da senhora foi abordado por um rapazote talvez um pouco mais velho que lhe disse:

- Olá. És novo aqui. Eu também ando a fazer entregas, chamo-me João e trabalho na Drogaria Ramos e tu?

- Eu chamo-me Roger e comecei ontem a trabalhar na Adega do Buraquinho na Praça dos Poveiros.

- Ah! Já sei, eu conheço o Sr. Victor, é um gajo porreiro, retorquiu o rapazote. Olha, hoje não que estou atrasado mas amanhã ou depois por voltas das seis da tarde, eu e vários colegas da profissão costumamos encontrar-nos na Praça Velasques e fazer umas corridas de bicicleta, se quiseres apresento-te a eles e podes também correr connosco. Tenho de ir, adeus, depois a gente conversa, prazer em conhecer-te.

- Obrigado igualmente, respondeu o Roger.

Todo contente, já tinha feito um amigo na cidade, que ainda por cima o ia apresentar a mais alguns, regressou à adega, entregou o papel assinado à Fatinha e estacionou a máquina no sitio do costume dirigindo-se de imediato para junto do Sr. Victor que tinha deixado acumular bastantes copos e pratos. Arregaçou as mangas e toca de lavar, passado algum tempo lá foi fazer outra entrega, à noite foi conhecer mais umas ruas novas e o tempo lá ia passando.

Dois dias depois, ia o Roger na Rua do Heroísmo e cruzou-se com o João que lhe fez uma grande festa. Pararam, conversaram um bocado e a certa altura o João disse-lhe para o seguir e lá foram os dois até à Praça Velasques. Aí chegados encontraram já à espera sete colegas, seguiram-se as apresentações e o Roger ficou a saber que eram todos da província. O João era da Régua, os outros sete, um era de Penafiel, dois de Paredes, outro de Lousada, havia um de Santo Tirso, e os outro dois, um era de Guimarães e o outro das Taipas.

Depois disso um deles disse para todos os outros:

- É pá, vamos lá fazer a corrida ou não? -é que se demoro o meu patrão dá-me cabo do juízo.

Todos os outros responderam em uníssono: - Vamos a isso!

Explicaram ao Roger que a prova consistia em dar dez voltas ao Jardim e o que chegasse primeiro era o vencedor. Um ficava a controlar e a confirmar o número de voltas, e como o Roger era o mais novo no grupo, cabia-lhe o papel de árbitro desta vez.

Lá fizeram a corrida e o João foi o vencedor, quase colado ao Serafim, o tal que era de Guimarães. Todos contentes vencedor e vencidos lá se despediram e combinaram que quem pudesse estivesse ao outro dia no mesmo local e à mesma hora.

O rapaz lá foi bem rapidinho para a adega a pensar:

- O Sr. Victor vai-me repreender por este atraso, mas foi tão porreiro conhecer aquela malta, vamos a ver, seja o que Deus quiser, felizmente não aconteceu nada, o patrão não estranhou a demora.

Sempre que podia lá ia ao encontro dos colegas e começou até a ganhar umas corridas. Aliás, demonstrou desde o início um jeito muito especial para o domínio da bicicleta, fazia algumas acrobacias que provocavam alguma inveja aos outros.

As semanas foram passando e a partir de certa altura começaram a aparecer menos colegas, Roger veio a saber depois que alguns tinham tido problemas com os patrões e que estavam a ser muito controlados, por isso o João teve a ideia e andou vários dias a passar a palavra para que cada um pedisse ao patrão para sair à noite de bicicleta, que era difícil mas nada como tentar e na verdade com excepção de dois todos conseguiram. Combinaram então que às nove horas das segundas quartas e sextas se encontrariam no mesmo local, e se bem o pensaram melhor o fizeram. Assim já podiam fazer as suas corridas sem problemas.

Os dias em Maio são bem compridos e anoitece bem tarde, de qualquer forma a Praça Velasquez é bem iluminada mesmo de noite.

Todos ansiavam a chegada dos três dias da semana dedicados à arte de bem pedalar e Roger agora já era um ídolo para os outros, ganhava quase sempre todas a corridas. Ele próprio ficou admirado com tais capacidades porque parecia que fazia sempre tudo melhor que os outros e era natural, ele não fazia nenhum esforço especial.

Numa daquelas noites foi abordado por um senhor que aparentava mais ou menos a idade do patrão, o Sr. Victor, que lhe disse:

- Olá rapaz. Tenho estado a observar-te e acho que tens um grande futuro pela frente. Sou dirigente do Futebol Clube do Porto, da secção de ciclismo, se quiseres posso inscrever-te lá.

Vais ver que fazes um figurão e não tarda muito estás a ganhar umas massas largas. Roger aceitou e marcaram para as 21 horas do dia seguinte no Estádio das Antas para a inscrição nos juvenis.

Estava doido de alegria, só pensava no que iriam dizer os irmãos e os colegas lá na terra quando soubessem.

No dia e hora marcada lá foi e ficou tudo assente, tinha três treinos por semana, um lanche no final do treino e pagavam os transportes. As coisas estavam a correr-lhe de feição. A bicicleta do Clube era exactamente igual à que tinha visto na montra na primeira noite que saiu para se ambientar às ruas das redondezas.

Naquela noite teve bastante dificuldade para adormecer, estava nervoso, doido de alegria e ansioso por contar aos patrões a novidade. Ás voltas na cama, cansado mas sem sono, pensava:

- Imaginem só as voltas que a vida dá, algum dia me passou pela cabeça ser atleta do Porto, isto aqui é a terra das oportunidades, maravilha de cidade, e eu com receio de sair lá de Baião. Ah caramba, ainda vou ser alguém, domingo vou a Baião, quero dar a novidade aos meus pais e irmãos, e aos meus amigos que vão ficar de boca aberta. Já agora vou ver se convenço os meus pais a virem cá passar a noite de S. João, toda a gente me diz que é uma festa espectacular, não sei como é mas gostava de partilhá-la com os meus pais.

Finalmente lá adormeceu e de manhã contou aos patrões e à Fatinha e lá continuou com os copos, as entregas, os treinos, imensamente feliz.

No domingo seguinte, bem cedo, apanhou a camioneta para Baião e lá foi de surpresa visitar os Pais. Estava ansioso por lhes contar as novidades, pena não poder estar lá mais tempo, tinha que ser rápido para apanhar a última carreira que partia a meio da tarde.

Os pais e irmãos ficaram doidos de alegria quando o viram chegar, ainda para mais assim de surpresa. A mãe até fez um almoço melhorado com direito a sobremesa, que o Roger tinha comprado na confeitaria lá da terra uma dúzia de pastéis.

Contou tudo o que tinha feito e da ida para o ciclismo do Porto, todos ficaram boquiabertos e até um pouco incrédulos. Convidou os pais a passarem a noite de S. João com ele, que não havia problema pois podiam dormir na sua cama, ele não se importava de dormir no chão. Eles disseram-lhe que iam pensar no assunto e que se pudessem iam.

Ainda arranjou tempo para visitar dois amigos de infância a quem pôs ao corrente do que se estava a passar, sabia que estes contariam tudo aos outros. Depois foi despedir-se da família que estava quase na hora de regressar.

A correr lá foi para a paragem e passados alguns minutos estava de volta à grande cidade.

Vinha feliz, com aquela sensação de triunfo, orgulhoso pelo que já tinha conseguido. À noite já no Porto foi ter com os colegas e lá lhes contou que tinha ido à terra, que tinha matado saudades dos pais, irmãos e amigos.

Tudo voltou à normalidade lá na adega, nos treinos melhorava de dia para dia e os dias lá iam passando com tudo a correr pelo melhor.

Na noite de S. João os pais vieram visitá-lo, passaram a noite com ele, divertiram-se imenso e no dia seguinte lá foram para a terra.

Um dia foi fazer uma das habituais entregas à Rua do Bonfim, mas desta vez contrariamente ao que normalmente acontecia não foi nenhuma senhora que lhe abriu a porta, era uma menina simpática que o fez estremecer. Ficou um bocado atrapalhado e disse-lhe:

- Olá menina, bom dia. Já aqui tenho vindo várias vezes e nunca a tinha visto.

- Pois, trabalho nestes senhores só há três dias, sou nova aqui. Vim de Padronelo em Amarante, conheces?

- Não. Vim de Baião para cá vai fazer cinco meses.

- Não imaginava que trabalhava aqui uma moça tão bonita. Eu chamo-me Roger e tu?

- Chamo-me Beatriz.

- Lindo nome, espero vir cá muitas vezes para a poder ver, exclamou o rapaz.

Ela sorriu, assinou o papel, ficaram a olhar um para o outro enternecidos e por fim ela disse-lhe:

- Bem, tenho que ir para dentro, adeus, até qualquer dia.

- Adeus Beatriz, se precisares de alguma coisa não te acanhes que eu venho logo a correr.

A moça fechou a porta e ele ficou ali especado alguns segundos completamente embasbacado, depois montou na bicicleta e seguiu para a próxima entrega. Pelo caminho bastante excitado ia pensando:

- Que linda miúda. Se ela soubesse como o meu coração palpitou ao vê-la, Deus me ajude a encontrá-la mais vezes.

A mocinha pelos vistos também não ficou indiferente e ao outro dia lá estava mais uma encomenda para a Rua do Bonfim. Mal a Fatinha pronunciou o nome da Rua os olhos do rapaz quase saltavam das orbitas. Era a única cliente naquela artéria e estava ansioso por lá voltar.

Num ápice pôs-se lá. Bateu à porta e lá apareceu a Beatriz. – Que satisfação -.

- Olá Beatriz, boa tarde, nem sabes como fiquei contente quando soube que vinha cá entregar estas coisas.

- Ai sim? Eu disse à minha patroa que estávamos a precisar dessas compras também para que viesses cá, respondeu com um sorriso um pouco envergonhado.

- Os teus patrões deixam-te sair no domingo à tarde? Podíamos dar uma volta por aí.

- Se deixam ou não, não sei, mas eu vejo o que acontece e se não me disserem para sair peço-lhes, respondeu a miúda.

- Às três da tarde deve ser uma hora boa. Estou à tua espera ao fundo da rua junto ao café.

- Está bem, se não houver nada em contrário apareço por volta dessa hora.

Roger entregou a encomenda e despediu-se com um sorriso do tamanho do mundo:

- Então se não for antes, até domingo!

Ele nem queria acreditar, ia poder sair com a linda Beatriz. Estava eufórico, no caminho para a adega enquanto pedalava ia dizendo para si próprio: Ó meu Deus, fazei com que ela não mude de ideias, ajudai-me Senhor.

Era quinta-feira e ele só queria que os dias passassem bem depressa para poder estar com a menina. As horas demoravam a passar, até o treino da sexta custou a passar mais do que era costume. A ansiedade era enorme.

Por fim o domingo lá chegou, a manhã custou a passar, depois de almoço lá vestiu a melhor roupa que tinha, apesar de não ter muito por onde escolher, engraxou bem os sapatos, deu uma penteadela ao cabelo de forma mais cuidada e lá foi a pé. Chegou ao local de encontro ainda faltava meia hora para o combinado, mas não fazia mal, pensava ele, mais vale chegar cedo que atrasado. O tempo não havia meio de passar, não tirava os olhos do relógio da Junta de Freguesia, ele teimava em não andar, depois de muita aflição lá chegou a hora.

O sufoco era agora ainda maior, o tempo a passar, os olhos pregados no cimo da rua a ver quando aparecia a menina e nada, até que passados uns vinte minutos lá viu a miúda a descer com aquele andar gracioso. Parecia uma Princesa.

A ansiedade deu lugar a um nervoso miudinho e ele foi murmurando:

- Ó meu Deus, ajudai-me a sair-me bem. Ela é tão bonita. Fazei com que sinta por mim pelo menos metade do que sinto por ela.

Cumprimentaram-se, um mais envergonhado que o outro, e o Roger disse:

- Está uma linda tarde de sol, vamos até ao Jardim de S. Lázaro, ou preferes ir a outro sítio?

Ela encolheu os ombros de disse:

Para mim tanto faz, desde que estejamos aqui às cinco horas, a patroa só me deu autorização de andar na rua até essa hora.

- Está bem, vamos lá então. Lá foram caminhando lentamente a ver as montras, nem um nem outro sabia o que dizer, até que a dada altura o rapaz lhe disse:

- És muito bonita, de quinta-feira até hoje não parei um segundo de pensar em ti, estava ansioso por este momento.

Posso chamar-te Tixa?

O meu nome é Rogério mas os meus patrões chamam-me Roger.

- Está bem, e eu chamo-te Ró, disse ela.

Foram andando, iam comentando sobre alguns artigos que viam em exposição nas montras e lá chegaram ao Jardim.

Sentaram-se num banco já mais ambientados e ele começou a falar-lhe dos pais e irmãos que tinha deixado lá na terra, dos treinos de ciclismo no Porto e do trabalho, ela por sua vez foi contando coisas sobre a sua terra e que tinha vindo para cá através de um anuncio no jornal. Pelo meio iam rindo com algumas pessoas típicas da cidade que passavam, sempre de olho no relógio da Igreja dos Lázaros.

Contrariamente ao que se passava antes, agora o tempo voava.

Beatriz apontou para a esquerda e disse:

- Olha, aquilo ali é uma Biblioteca, deve ter imensos livros, um dia que possa hei-de lá entrar, é melhor irmos embora que são quase cinco horas.

- Pois é. O tempo voa. E lá fizeram o caminho de regresso, agora com o passo mais acelerado. Chegados ao fundo da rua do Bonfim, ele confessou-lhe em jeito de despedida:

Nem sabes o quanto gostei de estar contigo hoje, foi muito bom espero que possamos passear mais vezes.

Ela sorriu dizendo:

- Também gostei muito, foi giro, com toda a certeza que vamos arranjar forma de sair mais vezes, agora tenho de ir, adeus, até um dia destes.

- Adeus Tixa, até breve, respondeu o Roger, que ficou a vê-la subir a rua, triste pelo tempo ter passado tão depressa, mas imensamente feliz pelo passeio que tinham dado e pela miúda ter sido tão simpática.

Beatriz quando abria a porta de casa acenou-lhe e ele retribuiu de forma efusiva cá de baixo.

Roger estava nas nuvens, nem queria acreditar no que se estava a passar. Respirou fundo, e com as mãos nos bolsos aos chutos às folhas das árvores caídas no chão, foi indo sem destino a assobiar baixinho a “Amapola” uma canção de Roberto Carlos muito em voga na altura.

Na rua Duque de Saldanha á porta de uma tasquinha estavam uns velhotes a jogar cartas e ele ficou ali algum tempo absorto nos seus pensamentos e deitando o olho às jogadas dos idosos. O pai às vezes juntava uns amigos à noite lá em casa e jogavam as cartas enquanto bebiam uns copos. Achava interessante mas nunca se sentiu muito atraído por aquele tipo de jogo.

Continuou a andar e ás tantas sem saber como, estava nas Fontainhas e já tinha perdido o norte, pelo que pediu a um sujeito que passava para lhe indicar o caminho para a Praça dos Poveiros. O homem disse-lhe:

- É simples, sobes esta rua e encontras um Jardim, na parte de cima do jardim viras à esquerda e estás nos Poveiros.

O rapaz agradeceu e quando chegou ao cimo da rua reparou que o jardim era o mesmo onde tinha estado com a Beatriz, local que conhecia bem.

- E eu a pensar que estava muito longe, murmurou baixinho.

Ainda era cedo para jantar, por isso resolveu ver as montras da Rua Santo Ildefonso, depois desceu Passos Manuel, entrou no cinema Coliseu e esteve a ver os cartazes, depois deu uma vista de olhos nas capas dos livros de banda desenhada que uma senhora velhinha tinha estendidos no passeio, entretanto estava na hora da janta, os patrões comiam por volta das oito horas por isso achou por bem ir indo.

Entrou pela porta das traseiras e foi directo à cave da adega onde estava o Sr. Victor a ler o jornal enquanto fumava o cigarrito da ordem.

- Boa noite Sr. Victor e D. Noémia, bem dispostos? Perguntou o rapaz.

A senhora salvou-o e patrão perguntou:

- Então rapaz, que andaste a fazer?

- Andei por aí a ver montras e conhecer ruas novas, a dada altura estava num sítio chamado Fontainhas e já não fazia ideia da distância a que estava. Afinal era bem pertinho daqui e eu já estava à rasca. Foi só subir a rua e já sabia onde estava, isto aconteceu porque vinha dos lados do Bonfim e por ali nunca tinha passado.

O Sr. Sem tirar os olhos do jornal disse:

- É, é já aqui em baixo. Quando deres por ela conheces tudo. Eu quando vim para o Porto também passei por situações semelhantes, ninguém nasce ensinado, nesta cidade há ruas a dar com um pau.

Nessa altura a D. Noémia interveio:

- Hei-de ver se te arranjo um mapa da cidade para entenderes melhor as zonas, as freguesias, mas o que te interessa mais são as ruas aqui à volta e essas aprendes num instante.

Roger sentiu uma vontade imensa de contar aos patrões que tinha saído com a moça que conhecera há dias, mas calou-se com receio que eles não gostassem e lhe dessem alguma bronca.

O jantar era carapaus fritos com batata cozida, o rapaz não gostava muito mas comeu tudo para que não lhe ralhassem. Quando acabou a refeição pediu licença para se retirar, deu as boas noites ao casal e foi para o seu quarto, as emoções daquele dia tinham-no deixado exausto, não tinha vontade de sair, queria era estender-se ao comprido. No fundo queria digerir toda a aventura porque tinha passado e dar asas à imaginação acerca do que iria acontecer a seguir.

Deitou-se vestido em cima da cama, apenas tirou os sapatos e ficou a olhar para as telhas enquanto revia todas as situações ao pormenor de tão famigerado domingo.

- Tive mesmo muita sorte - pensava ele - ela deve gostar de mim também, senão não aparecia e depois quando me visse dava uma desculpa qualquer.

É isso Baionense duma figa, és mesmo um sortudo, a Tixa está caídinha por ti. Deus queira que amanhã precisem de compras para eu a poder ver.

Embrenhado em todos aqueles pensamentos acabou por adormecer mesmo vestido e só acordou quando o despertador tocou.

Levantou-se um pouco aturdido, calçou os sapatos, atravessou o quintal, lavou a cara, deu uma penteadela no cabelo e pronto, há que ir para a luta.

Durante o dia não houve nenhuma encomenda para a freguesa da Rua do Bonfim, e ele tanto queria ver a miúda. Fez imensas entregas, mas nenhuma para aqueles lados.

À noite depois de jantar foi a correr até ao Estádio das Antas para o treino, chegado lá, equipou-se, a seguir fez exercícios de aquecimento, ouviu os ensinamentos do treinador e a depois lá foi fazer as voltas de bicicleta na pista de atletismo.

Como sempre deu o seu melhor, e tentou com todo o afinco por em pratica aquilo que o treinador tinha mandado fazer.

Xis voltas em pedalada certa e lenta, depois outras tantas a puxar e as ultimas ao sprint.

A poucos e pouco foi marcando a sua presença, de tal modo que os colegas, começaram a ter algum respeito pelas suas potencialidades.

O próprio treinador ás vezes quando lhe estava a dar força e a incitá-lo a fazer melhor ainda, deixava sair o comentário:

Este gajo vai ser um campeão. Tem tudo para ser o melhor.

No final do treino e depois de tomar banho meteu-se ao caminho pela Avenida Fernão Magalhães abaixo, Santos Pousada, Santo Ildefonso e lá estava ele na adega do Buraquinho.

Na terça e quarta-feira seguintes também não houve encomenda nenhuma para casa da miúda. Ele andava triste e inquieto, tinha vontade de ir lá bater à porta mas não podia ser, levava alguma corrida e depois é que as coisas se complicavam.

Na quinta-feira à tarde estava como de costume a lavar copos, entre entregas era esse os seu serviço, e de repente olha para a porta e quase deixava cair um copo ao chão, era a Tixa a acenar-lhe a dizer-lhe adeus, ficou tão emocionado que nem sabia o que fazer, depois acenou-lhe também e ela desapareceu.

Oh quanta felicidade, a vontade era largar tudo e ir a correr atrás dela, mas infelizmente não podia ser. Ficou com a cara avermelhada e um bocado atrapalhado porque o patrão assistiu à cena.

- Eh lá rapaz, é uma pretendente? Não me digas que já andam aí miúdas caídinhas por ti!

- Não Sr. Victor, é a criada da Sra. Esmeralda da Rua do Bonfim, viu-me aqui e disse-me adeus.

Só no sábado de manhã a Fatinha o chamou para levar uma encomenda à casa onde trabalhava a miúda. Ele ficou esfusiante, não correu, voou, para chegar o mais depressa possível.

Quando bateu à porta lá veio a Beatriz bastante envergonhada receber a encomenda e o Roger para além dos cumprimentos, aproveitou para dizer que lhe tinha custado bastante estar tanto tempo sem a ver, que teve saudades e que estava ansioso por aquele momento. Ah, que tinha ficado na maior das alegrias por ela ter passado e acenado à porta da adega.

Ela respondeu que também tinha tido saudades, que adorou o passeio de domingo e que foi a um recado à drogaria em Santo Ildefonso e que aproveitou para espreitar o trabalho dele e que nem sabia como tinha tido coragem de se deixar ver e acenar-lhe.

- Quando fores para aqueles lados passa sempre por lá, nem imaginas a minha alegria quando te vi, disse ele.

- Por falar em alegria, amanhã dá para passearmos? Fazemos com no passado domingo, escolhemos é outro sítio.

- Não sei, mas acho que sim. Em principio não deve haver problema, respondeu ela.

- Está bem. Então está combinado, à mesma hora e no mesmo sítio, sentenciou ele.

- Certo. Tenho que ir para dentro senão a senhora ainda me ralha. Adeus, até amanhã.

O rapaz não cabia em si de satisfeito, estava tudo a correr muito bem.

Fez o percurso do regresso bem mais devagar a assobiar e a pedir a Deus que o tempo passasse bem depressinha.

Os patrões da Beatriz, Dona Esmeralda professora da escola primária e o senhor Nóvoa Tenente-Coronel do exército eram muito rigorosos, de modo que a moça não podia fazer muitas ondas, tinha que ter muito cuidado senão ainda a mandavam de volta para a sua terra.

Roger tinha imensa vontade de partilhar esta alegria com alguém mas não podia, se ao menos o João aparecesse, a esse podia contar.

Depois de chegar à adega lá se atirou à lavagem dos copos, ainda teve mais duas saídas para entregas e entretanto chegou a hora do fecho.

Jantou, pediu aos patrões para sair um bocado, mas passada uma hora já estava no quarto, pensava ele que se adormecesse cedo, mais depressa chegava a hora de estar com a miúda.

Deitou-se com os seus pensamentos, mas o sono não chegava, estava demasiado excitado para adormecer. Deu voltas e mais voltas na cama mas não conseguia pregar olho. Ao fim de duas horas lá ficou a dormir.

De manhã lá se levantou, tomou o café e comeu o pão com manteiga da ordem com os patrões e em seguida desceu a Rua Passos Manuel e foi até à Avenida dos Aliados. Estava uma manhã bonita, com muito sol, o movimento não era muito, próprio de um dia de domingo. Ficou especado a ver os eléctricos a passar, amarelos, bonitos, tinham qualquer coisa de mágico. Um deles ia a passar e parou repentinamente porque a haste que ligava ao fio da corrente soltou-se e o condutor saiu para a voltar a encaixar. Tudo isto era novo para o rapaz de Baião.

- Que pena não haver eléctricos lá na minha terra, murmurou baixinho, ficavam lá mesmo bem.

Quando passou pela estátua da menina nua, ficou imenso tempo a admirá-la, e disse para com os seus botões:

- Que descaramento numa avenida destas uma mulher nua. O padre de Loivos jamais deixaria pôr uma escultura destas lá na freguesia, é bonita mas assim nua.

Sentou-se num dos bancos de jardim e ficou a contemplar os desenhos da calçada à portuguesa, alguns estavam cobertos por centenas de pombas que andavam por ali em busca de comida pelo que teve que esperar que elas levantassem voo para os poder ver.

- Tudo isto é muito bonito, quando for outra vez à terra vou ter muito que contar.

Estava a manhã passada e o melhor era tratar de vida, pelo que resolveu regressar a casa dos patrões para almoçar.

Comeu bacalhau à Gomes de Sá enquanto o Sr. Victor e D. Noémia se travavam de razões por causa de uma encomenda de bagaço que já deveria ter chegado e estava a fazer falta.

Estava ansioso pelas três da tarde e o tempo teimava em passar lentamente.

- Será que os patrões da Tixa a vão deixar sair? Deus queira que não se atrase muito senão não temos tempo para nada, pensava ele.

Chegada a hora e depois de mais uma vez cuidar do brilho dos sapatos e a penteadela da ordem lá foi todo feliz até à porta do café onde tinha combinado esperar pela moça. Às três e dez começou a avistar a miúda a descer a rua.

- Vá lá, conseguiu, que lindo andar tem a miúda. Olá Tixa, boa tarde, bem disposta?

- Olá Ró, a D. Esmeralda deixou-me sair até às seis, sempre é mais uma horita que a semana passada, disse ela com um sorriso enorme.

- Ai é? Que bom. Queres ir ver o Estádio das Antas? Vou mostrar-te o sítio onde treino à noite às segundas, quartas e sextas.

- Está bem. Deve ser bonito e é mais uma coisa nova que conheço.

Começaram a subir a Av. Fernão Magalhães e a dada altura Roger disse:

- Espera aí que eu venho já. Entrou num café e passados alguns momentos apareceu com dois gelados na mão.

– É de chocolate, gostas? Perguntou.

- Ela envergonhada respondeu: Gosto sim, são muito bons, -obrigada!

Continuaram a subir e quando chegaram à Praça Velasques ele disse-lhe:

Olha, é aqui nesta praça que às vezes eu e os meus colegas nos encontramos e fazemos corridas de bicicleta. Já ganhei uma data delas, e foi aqui que o dirigente do Porto me contactou para ir para o Clube, explicou todo orgulhoso.

Continuaram até que chegaram ao Estádio. Havia jogo, já tinha começado e devia ser com a Académica, porque andavam por lá muitos estudantes de capa e batina.

Nas imediações do estádio ouvia-se bem o som das pessoas a aplaudir e assobias as jogadas da partida que estava a decorrer.

Muita gente por todo o lado, vendedores de bebidas, sandes, rebuçados e bolos, bandeiras, gaitas e chapéus para o sol.

Sem querer tinham ido a uma festa. Toda aquela algazarra e alegria, era motivo de enorme satisfação.

Andaram por ali de um lado para o outro até que começou a sair um mar de gente do Estádio, sinal evidente que o jogo tinha acabado.

Com estas e com outras já eram cinco e meia da tarde e era preciso voltar para casa.

- Ró, está na hora, é melhor irmos andando, disse a Tixa.

- A descer todos os santos ajudam, mas vamos lá, respondeu o rapaz.

Iniciaram o regresso e a meio da Av. Fernão a miúda parou com um ar triste e disse:

- Ró, tenho uma notícia muito triste para te dar. Os meus patrões vão para o Alentejo durante os três meses das férias grandes da escola, partimos amanhã ou no dia seguinte. Parece que têm lá uma quinta grande e vão para a casa de lá todos os anos nesta altura. O Tenente-Coronel vai lá levar-nos e volta para cá, só lá vai passar o fim-de-semana e depois, acho que é em Agosto, passa lá o mês todo connosco, mas só vimos no final de Setembro.

Pelo que entendi a casa é muito grande e junta lá a família todos os anos por esta altura.

O rapaz ficou sem fala.

- Vou estar tanto tempo sem te ver!

- Acho que vou dar em doido, Ró.

- Também vai ser difícil para mim, mas não podemos fazer nada, tem mesmo de ser assim. Escrevemos umas cartinhas um ao outro e se Deus quiser o tempo acaba por passar rápido e tudo volta à normalidade, disse a Tixa com o ar mais triste deste mundo.

Roger acenou com a cabeça dando sinal que estava de acordo, mas não foi capaz de dizer qualquer palavra. Estava entalado, acabava de lhe cair o mundo em cima.

Não queria acreditar no que tinha acabado de ouvir e não imaginava como iria passar tanto tempo sem ver a miúda.

Desceram o resto da Avenida em silêncio e pensativos até que a moça parou, olhou-o nos olhos, fez-lhe um carinho na face com a mão e deu-lhe um beijo na cara, como que a confortá-lo, exclamando: Ró! Não fiques triste. Vais ter sempre notícias minhas e quando eu vier vamo-nos fartar de passear e contar um ao outro, tudo o que aconteceu durante a minha ausência.

O rapaz esboçou um sorriso e disse: Sim, claro, mas promete que me escreves todas as semanas a contar como estás, senão acho que dou em maluco. Eu por mim prometo que te escrevo também.

Chegados ao fundo da Rua do Bonfim, já era tarde para ela, olharam-se por momentos, calados, e o Ró muito tímido deu-lhe um beijo na cara. Ficaram os dois muito embaraçados, ela virou-se de repente e dizendo-lhe adeus, correu pela rua acima sem parar até entrar em casa.

Roger ficou no maior pranto, estava completamente desnorteado, não conseguia raciocinar, vinham-lhe imensas coisas à cabeça, mas tudo muito abstracto, sem qualquer ligação. Foi andando absorto em pensamentos absurdos de tal forma que sem saber como, estava já junto à Câmara do Porto.

Sentou-se num banco do jardim da Avenida dos Aliados e ficou ali durante mais de uma hora a olhar para o trânsito totalmente aéreo, alheio a tudo o que o rodeava.

Depois disto, como que estivesse a acordar de um pesadelo, disse para consigo próprio: Então! Vá lá, não é altura para desânimos, vai correr tudo bem e se Deus quiser o tempo vai correr depressa. É melhor ir para casa que o jantar daqui a pouco está pronto.

Chegado a casa tentou disfarçar como pode a tristeza que lhe ia na alma, mas não conseguiu, a D. Noémia notou logo que alguma coisa se passava, e perguntou:

Que é que tens Roger? Estás tão cabisbaixo, o que aconteceu?

- Nada Dona Noémia, está tudo bem, é impressão sua, estou apenas um bocado cansado e com sono. Mal acabe de jantar vou-me deitar, a não ser que precisem de mim para alguma coisa.

- Não. Não é preciso nada, mas a mim não me enganas, lá que não queiras contar o que se passou, tudo bem, mas que alguma coisa aconteceu e te fez ficar assim triste, disso não tenho dúvidas. Ó rapazinho, já cá ando há muitos anos e não é um fedelho como tu que me engana. Come lá e vai à tua vida. Queira Deus que não andes para aí a meter-te em alhadas.

O Sr. Victor lá ia metendo umas garfadas à boca sem tirar os olhos do jornal “O mundo desportivo” e nem sequer ouviu nada do que falaram.

O jantar era grão-de-bico e o Roger um bocado a custo, estava sem apetite, lá conseguiu comer o que lhe tinham posto no prato. Quando acabou, pediu licença para se retirar e despediu-se com um: - Boa noite, até amanhã se Deus quiser.

Foi directo para o quarto. Sentou-se na beira da cama e ficou ali durante algum tempo com os cotovelos pousados nos joelhos e as mãos a segurar a cabeça a olhar fixamente o soalho do quarto. Ainda era muito cedo para se deitar mas não tinha vontade de fazer nada.

Sem saber porquê, pegou num caderno que tinha na mesinha de cabeceira e começou a escrever:

Tixa. Ainda nem sequer partiste e já estou com muitas saudades. Sinto um vazio no peito que nem te sei explicar. A minha patroa perguntou-me o que se passava, disse que eu estava triste e queria saber porquê, mas eu não lhe disse nada, disse que estava cansado e com sono. O patrão estava tão entretido a ler o jornal que nem deu por nada. Ainda bem senão também tinha que me desculpar a ele.

Não sei como vou passar o tempo, só de saber que não te vejo aos domingos. Queria tanto estar contigo, acho que nem tenho vontade de ir aos treinos de ciclismo.

Três meses, é muito tempo. Se pudesse ia visitar-te mas é muito longe, se calhar ainda é mais longe do que penso…

Foi então que se lembrou que não sabia a morada para lhe mandar a carta e pensou:

- Não faz mal, quando ela me escrever respondo-lhe à carta e mando esta para que ela saiba que mesmo antes de ir já eu estava a escrever-lhe.

Meteu o caderno na gaveta e começou a despir-se. Deitou-se, apagou a luz e ficou a pensar no que estava a acontecer, às escuras, na esperança de adormecer rapidamente e acordar ao outro dia com outra disposição.

Acabou por adormecer e quando acordou, bastante cedo, eram cinco e meia da manhã, começou a lembrar-se de sonhos estranhos que teve durante o sono, pedaços de situações sem nexo em que invariavelmente se encontrava em maus lençóis, mas num deles viajava sozinho num navio e encontrava-se numa zona onde tudo à volta era água, uma imensidão de água e céu, conseguia ver enormes peixes a dar saltos enormes e não conhecia ninguém à sua volta.

Olhou para o relógio e ao ver que era tão cedo virou-se para o outro lado, fechou os olhos e ficou pacientemente à espera de voltar a adormecer, o que não chegou a acontecer. Passado uma hora, desistiu e levantou-se. Vestiu-se e saiu para a rua através do quintal, já muita gente passava apressada provavelmente para os seus empregos. Foi até ao Largo do Padrão e ficou ali a ver o movimento, sem perder de vista o relógio que via através da montra de uma confeitaria onde já muitas pessoas tomavam o pequeno-almoço.

Entretanto eram sete e cinquenta e apressou-se a voltar a casa para começar a trabalhar às oito. Entrou pela porta do quintal para que os patrões não estranhassem e lá foi para o seu posto de trabalho, o patrão estava a acabar de abrir a porta da adega.

- Bom dia Sr. Victor.

- Bom dia Roger. Vai-me lá abaixo buscar um garrafão de bagaço que este está a acabar e passa-mo para garrafas que daqui a pouco começam os mata-bichos e assim adiantamos serviço.

A Dona Noémia disse-me que estavas muito estranho ontem. Passa-se alguma coisa? Vê lá o que andas a fazer, olha que eu sou responsável por ti, não me arranjes problemas.

- Ó Sr. Victor não se passou nada, estava era cansado e com sono.

- Está bem vai lá.

Começaram a entrar os primeiros clientes e a serem servidos os primeiros néguinhos do dia, assim como os bagaços da ordem.

- Bom dia Sr. Victor, bote-me aí um bagaço para matar o bicho, pediu um cliente.

Roger já tinha ouvido muitos pedidos como este mas não sabia que bicho queriam eles matar, por isso resolveu perguntar ao patrão:

- Ouço tanta gente pedir bagaço para matar o bicho, que bicho é esse, Sr. Victor?

O patrão deu uma gargalhada e respondeu:

- Não é bicho nenhum, o que eles querem dizer é que um bagaço pela manhã os protege de gripes, constipações e outras doenças.

Entre a lavagem da louça e a ajuda ao balcão, Roger fazia tudo por tudo para não pensar na Tixa, mas era inevitável. Já teriam ido? Será que vão só amanhã? Logo à noite passo lá na rua e se vir luz já fico a saber se foram ou não, pensava o rapaz.

Se ao menos pudesse vê-la mais uma vez antes de partir, que mania que esta gente tem de fazer férias.

Da parte da tarde fez algumas entregas e em todas aproveitou para passar pela Rua do Bonfim embora nenhuma delas fosse para aqueles lados, mas em vão, não viu nenhuma movimentação e continuou sem saber se já tinham partido ou não.

Ao fim do dia, depois de jantar lá foi ver se descobria algumas coisa e viu que havia luz em casa, sinal evidente que não tinham ido ainda.

- Caramba. Quem sabe mudam de ideias e acabam por não ir. Era bom, era bom. Se ela viesse à janela podia acenar-lhe mas não tenho essa sorte.

Acabou por desistir e começou a andar pensativo até que sem dar por ela estava na Estação de Campanhã. Entrou, sentou-se num banco na gare e ficou ali a ver a chegada e partida dos comboios.

Havia grande azáfama num comboio que estava numa linha ao lado, com muita gente a chegar, carregados de malas, todos traziam imensa bagagem e isso despertou-lhe a curiosidade. Levantou-se e foi ver a placa que indicava a hora e o destino, e ficou a saber que era uma comboio com destino a França. Eram emigrantes que iam tentar a vida fora, por isso levavam tanta coisa com eles.

Ainda faltava meia hora para a partida e cada vez chegava mais gente. Manteve-se por ali até que ouviu vários apitos e as pessoas que estavam do lado de fora do comboio começaram a acenar com lenços brancos para as pessoas que se encontravam no interior do comboio, no meio de choros e desejos de boa sorte aos que partiam. Ouviram-se mais uns toques, agora mais prolongados e foram à vida deles.

- Um dia hei-de ir com a Tixa a França, mas só para conhecer o País, gosto muito da minha terra, sou Português e é aqui que me hei-de safar.

Era quase meia-noite, por isso o melhor era fazer-se ao caminho, e lá foi dormir que tinha que se levantar cedo.

Os dias começaram a passar, lentos e sem graça e nada de notícias da miúda. Cada vez ficava mais angustiado e inquieto até que na terça-feira da semana seguinte, ao fim da manhã, entrou o correio cumprimentou os presentes e entregou ao Sr. Victor algumas cartas enquanto bebia um copo. O patrão separou uma delas, olhou pela frente, olhou por trás, voltou a olhar e disse:

Ó Roger, tens aqui uma carta para ti, do Alentejo, não sabia que conhecias gente de lá do sul, pega.

O rapaz ficou doido de alegria, finalmente chegavam as novidades que tanto ansiava.

Agradeceu ao Sr. Victor meteu a carta ao bolso e ficou em pulgas para a ler, mas como estava a trabalhar, com muito esforço conteve-se e pensou que estava quase a chegar a hora de almoço e nessa altura ia ao quarto lê-la.

- O tempo parece que tinha parado, não havia meio de passar.

Quando a Dona Noémia chamou para almoçarem, apressou-se a pedir licença para ir à casa de banho e abrindo a carta que tanto ansiava, leu com toda a atenção o que a Tixa dizia, relendo cada parágrafo como se a quisesse decorar.

- Olá Rôzinho. Que saudades, dizia ela.

Só viemos na terça-feira passada, o patrão não veio connosco, mandou um militar levar-nos, a mim e à Senhora. Saímos de casa às oito e tal da manhã, almoçamos para os lados de Lisboa e chegamos a Beja já passava das oito da noite. Já estava farta de andar de carro, mas gostei da viagem, vi tantos sítios bonitos. Isto cá em baixo é muito diferente da minha terra, não há tanta verdura, é tudo muito seco e o sol é muito forte.